Justiça brasileira: encarceramento de homens negros por acusação de furto de uma bicicleta
Este é Alexsandro, 36 anos, em frente ao Fórum Rodolfo Aureliano, no Recife. Na manhã de uma quinta-feira, a esperança do rapaz é se livrar da “coleira”, uma tornozeleira eletrônica que machuca o pé, fere a alma e lhe impede — há mais de 4 meses — de iniciar um tratamento para dependência química numa comunidade terapêutica em Garanhuns, agreste pernambucano. “O povo me olha com isso no pé, parece que eu sou um cachorro”, é a queixa diária. O dispositivo, monitorado por GPS, precisa ser carregado na tomada de 4 a 5 horas por dia e não permite que o rapaz saia da região metropolitana do Recife.
A audiência de hoje estava marcada para as 10h, mas audiências (como a prevista para o último dia 7) costumam ser adiadas. Haja esperança pro coração desse homem, eu pensei. Entramos na fila que dá acesso ao fórum. Uma moça passa em nossa frente com a naturalidade de quem dá bom dia num elevador. “Ei, moça. O final da fila é ali”, eu digo sem acreditar na cara de pau da sujeita, que responde: “Eu sei, mas sou advogada e tenho audiência marcada”. “Sim, ela também é advogada — eu aponto pra Camila — e ele também tem audiência com hora marcada. A senhora não pode passar na nossa frente”.
A escrota diz que vai passar sim, e eu tenho vontade de ser como a Maria Eduarda de 3 anos que esbofeteia a irmã mais velha por soprar a vela de seu bolo de aniversário. Pego no braço da mulher, aumento o tom de voz e digo “a senhora não pode fazer isso, não pode furar fila.” Alexsandro segura meu braço, me afasta da mulher e com fala mansa, diz “deixa pra lá, Duda, não adianta, não”. O segurança do fórum assiste a tudo e não se opõe a nada. Mede a temperatura da advogada alma sebosa, que entra no prédio suntuoso de paredes de granito. Eu penso que este país não é para amadores.
Alexsandro passou 1 ano, 1 mês e 26 dias preso por “acusação de tentativa de furto de uma bicicleta de uso compartilhado por aplicativo”. A prisão — processualmente absurda — é o retrato do que há de pior neste país racista e desigual. Um homem foi encontrado no bairro de Areias com uma bicicleta roubada e disse que a recebeu de Alexsandro na vizinhança de Afogados. Os policiais militares foram até lá e encontraram Alexsandro — sem nenhum objeto roubado — e o prenderam “em flagrante”.
Ele perdeu contato com a família há anos, por isso não recebeu nenhuma visita durante os 422 dias de prisão. Não sabíamos, mas detentos só podem receber visitas de familiares. Alexsandro manteve contato com algumas amigas por telefone — todas mulheres capazes de olhar um pouco pro lado e se importar com o flanelinha sorridente, boa praça, cuidador de animais de rua e lavador de carros. Alexsandro nos ligava do presídio, implorando ajuda. “Isso aqui é um inferno, me tirem daqui, pelo amor de Deus”. A gente prometia fazer de tudo para tira-lo dali. E fizemos. Mas ninguém achava que a história da bicicleta pudesse render tanto.
Conseguimos excelente assessoria jurídica para Alexsandro (gratuita!) e assistimos — do conforto de nossas vidas privilegiadas — o cenário de morosidade e descaso da justiça brasileira com esse rapaz negro e analfabeto. Foram quatro pedidos de Habeas corpus. O caso foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). De Brasília, a juíza Rosa Weber negou o pedido de soltura do pernambucano preso por acusação de tentativa de furto de uma bicicleta. Preso antes de ter direito a julgamento, sem ter sido convocado a nenhuma audiência. Preso antes de ter sequer direito à defesa.
Alexsandro foi solto no último dia 19 de junho. Deu sorte (que conceito tão relativo) do processo cair nas mãos de um juiz substituto que tirava férias do titular que mandou lhe prender. Com os advogados acompanhando de perto o andamento do processo, o magistrado se sensibilizou com a situação absurda do caso e autorizou a soltura do rapaz, mediante uso de tornozeleira eletrônica. (Um adendo aos meus colegas de classe média: um morador de rua sai de um presídio por conta e risco próprios, sem apoio, sem programa de assistência social, sem o dinheiro da passagem de ônibus para qualquer lugar, fecha parêntese).
E seguimos, há 4 meses, no calvário jurídico para que o Estado autorize Alexsandro a sair da região metropolitana do Recife. O motivo do deslocamento é o internamento na Fazenda Esperança de Garanhuns — uma instituição de referência, bem recomendada, onde este morador de rua poderia tratar da dependência química, permanecer por 12 meses, com três refeições ao dia, aprendendo algum ofício e sendo alfabetizado (porque o Estado falhou imensamente com a criança negra e pobre que Alexsandro foi um dia e hoje sua assinatura ao final da audiência foi o polegar direito carimbado num papel).
Que dureza habitar a pele e o corpo de Alexsandro. O rapaz segue tendo todos os seus direitos surrupiados por um Estado criminoso, racista, omisso. Durante a audiência, o promotor de justiça pediu vistas do processo. Disse que precisava analisar um pouco mais o caso para determinar a flexibilização da medida cautelar (no vocabulário de Alexsandro, livrar-lhe da coleira de cachorro). Será que o pedido é talvez para (re?)ler a declaração da instituição que já estava ali, anexada ao processo, contextualizando a espera de autorização judicial para que o rapaz se interne em Garanhuns? O promotor — também um homem negro — deu uma mini palestra sobre o histórico e o sentido das medidas cautelares enquanto eu pensava em Paulo Freire: quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor. Que lapada.
Os advogados conversam com o juiz, com o promotor, navegam com maestria e paciência tudo aquilo. Eu olho para Alexsandro e digo que ele está indo bem de se manter ali tão calmo. É um jogo de xadrez, eu penso. E é incrível ver no meu pai, aos 80 anos, um advogado que joga aquele jogo com a graça de um craque que dribla lindamente em direção ao gol. E que se deslumbra com o passeio da bola. Mas o gol não ficou pra hoje. “Eu sou maratonista, minha filha”, ele costuma dizer. E o saldo do dia é que Alexsandro vai ter que esperar — mais uma vez — um pouco (muito) mais.
Saímos do fórum. Alexsandro com a mesma tornozeleira, machucando a alma ainda mais. A esperança que trazia pela manhã ficou na sala da audiência. Seremos avisados do parecer do Ministério Público em breve, nos garantiram. Os advogados continuarão a batalha jurídica, enquanto rezamos para que um sopro de sensatez ilumine aqueles homens que assinam aqueles papeis e decidem sobre as vidas alheias, colocando tanto de si no que fazem.
Vamos torcer pra que Alexsandro “segure as pontas” nas ruas. Pra que não roube, não mate, não arremesse tijolos na cabeça de ninguém ou em vidraças. Eu imagino que não há de lhe faltar vontade de fazer algo disso. Eu, do alto dos meus imensos privilégios, precisei controlar os instintos na ida ao fórum.
No caminho de volta à praça Chora Menino, dou conselhos, recomendo ter juízo, cuidar do vício, esperar um pouco mais que vai dar tudo certo, ele vai se livrar daquela tornozeleira. Mas é preciso mesmo muita paciência. “Deus faz as coisas e a gente não entende, né Duda?”. Eu, cheia de perguntas sem respostas, digo que sim, concordo inteiramente. Ele me observa. “Ô, Duda. Esse negócio de celular aí é um vício também, viu? Cuidado aí”, me aconselha. Eu digo que ele tem mesmo razão, preciso usar menos o celular. É tudo verdade.
Ele desce do carro e pergunta se não vou mesmo deixar pra lavar, tá muito sujo. Eu digo que estou sem tempo, fica pra próxima. Ele tira a máscara, dá um sorriso e eu me espanto dizendo que está mais bonito. E está mesmo. “Foi os dentes, Duda, dei uma ajeitada”. Ele passou a frequentar a igreja aos domingos, uma moça que trabalha ali pela Chora Menino parece especialmente empenhada em ajuda-lo. Ela conseguiu uma camisa nova para audiência, fez questão que ele passasse perfume e levasse um frasco pequeno de álcool em gel no bolso da calça. Ao nos ver chegar, ela se aproxima, quer saber como foi no fórum. “E aí? Tirou?”. Eu vejo a cena e me imagino fotografando o casamento do casal.
Conversamos rapidamente, os três. Digo que preciso ir, e de repente, com a máscara na mão, Alexsandro dá um sorriso largo, enfia os braços por dentro da janela do carro e me dá um abraço apertado. Bochecha com bochecha, zero protocolo Covid. Eu torço pra não ter sido infectada, mas penso que seria pelo menos um jeito bonito de contrair esse maldito vírus.
Alexsandro nem desconfia, mas me ensinou muito hoje. Fiquei tão tocada com tudo que vi que precisei escrever esse textão e dividir com mais gente. Não coube em mim.
(Ah, os outros dois rapazes — negros como Alexsandro — envolvidos na acusação de furto da tal bicicleta seguem presos. São representados pela Defensoria Pública do Estado. Os advogados de Alexsandro, mesmo sem representar os rapazes oficialmente, pediram a extensão do pedido de liberdade aos dois jovens. O Ministério Público havia dado parecer favorável à soltura dos rapazes. Durante a audiência, o Defensor Público reiterou o pedido de liberdade, que foi reforçado pelo MP, mas o juiz também não decidiu a questão durante a audiência. Deixou a decisão pra depois. Os dois rapazes seguem presos desde abril do ano passado: são mais de 548 dias de encarceramento pela acusação de furto de uma bicicleta.)
(Profunda gratidão à equipe de advogados que encabeçam essa odisseia jurídica. Que sonho imaginar todos os Alexsandros deste país com acesso ao tipo de defesa feita por vocês.)